texto escrito pra uma das minhas saudades
Meados de 2003, ele sabia onde eu malhava, a que horas corria, onde estacionava meu carro e até já havíamos nos cruzado umas poucas vezes. O que ele não sabia era que eu, há tempos, percebia sua presença, que comecei a correr por sua causa e que isso me renderia umas tantas sessões de fisioterapia no joelho. Era um loro atlético, e por algum motivo inexplicável, bem diferente dos outros 575 loros atléticos que corriam na Beira Mar.
Ele tentava me acompanhar nos exercícios bem discretamente e até gostava de ver meu esforço escomunal pra correr meros 2 km, percebia uma certa dignidade nisso. Eu, por vez, apenas sabia, no auge da minha falta de boa forma, que se tratava de um triatleta, daqueles que madrugavam pra treinar, competiam aos domingos 6am e trocavam facilmente as noites de culto a Baco por um justo sono tranquilo.
Um dia nos cruzamos, num elevador lotado do Potenza, eu entrando e ele saindo, e por razão nenhuma nos cumprimentamos. Duas singelas vogais: Oi e um breve sorriso amarelo quase enterrando os olhos no chão.
Passaram semanas até que voltássemos a nos ver, agora no estacionamento do prédio, de longe, e somente acenamos. Permanecemos de longe, por conta de umas várias viagens a trabalho e competições, por mais uns pares de semanas.
Não lembro quem tomou a iniciativa, se fui eu que resolvi colocar um decote maior e ficar esperando a 89ª rodada de elevador pra entrar apenas quando ele lá estivesse, ou se foi ele que acordou de manhã com vontade de causar. Lembro apenas que fomos além de duas vogais. Ele teve a audácia de me chamar pra almoçar, e eu o desplante de aceitar.
Durante o almoço, eu com meu singelo prato de pedreiro e ele com salada, soube que ele voltara a solteirice a pouco e eu,tratei de me adiantar afirmando convictamente estar numa relação fadada ao fracasso e com os dias cotados, faltava só a coragem pra acabar (juro que era verdade!). Ele tomou um suco e eu uma Coca - passei dias pensando que poderia ter pedido pelo menos uma Coca light pra causar boa impressão - e ficamos de nos falar.
Dias depois e eu ja sem nenhuma unha ou cutícula pra roer - inclusive as dos pés - e, a propósito, com o antigo namoro decadente já ido pro saco, ele telefonou.Depois de contar lentamente a até 10 antes de atender e quase tendo um AVC do outro lado da linha, comentei nadíssima sutil que passara a integrar o time dos solteiros. O recado foi prontamente entendido e saímos pra jantar, e desde então não paramos de sorrir, tocar e nos conhecer.
Eu contei, entre lençóis, dos perrengues e peripécias de se trabalhar com navegação. Ele contou, no nosso 1º fi de semana juntos, da relação que tinha com os pais e de como isso influenciara no seu caráter. Eu comentei, enquanto cozinhava seu macarrão com atum e molho de tomate, que havia sido a criança mais feia do colégio e que isso me custara 8 anos ausente de fotos de família e colegiais. Ele disse, enquanto procurava nossa música preferida na rádio, que pretendia morar no Rio ou em Brasília e eu respondi, enxugando suas costas e penteando seus cabelos, que já tinha morado em Madri e que a experiência era bastante válida.
Me confessou ainda, embaixo do edredom e no meio da sessão pipoca, que de pequeno queria ser astronauta. Eu contei, secando o esmalte, que escrevia poemas. Um dia lemos juntos e ele gostou.
Não chegamos a viver juntos, como grande parte dos casais. Sequer nos rotulamos, mas foi com ele que corri minha primeira maratona e nunca mais ficamos separados por um elevador, nem por um sorriso amarelo e nem por um silencio interrogativo ou possibilidade remota.
Ele se foi pra Brasília com meu total apoio e incentivo, eu fiquei no aeroporto. Seguimos nossas vidas e ainda nos falamos com frequência cada vez mais rara. Pra mim, nunca mais apenas um triatleta. Pra ele, nunca mais apenas uma menina que trabalhava com navios. Sigo lembrando do meu amor contingente. Seguimos sendo saudades...