organizando os ingredientes

Este blog é escrito por Roberta Dutra. Nasci em Belém do Pará e passei maior parte da vida no Ceará, me mudei algumas vezes, viajei pelo mundo outras tantas e atualmente moro em Santa Catarina. Cresci em família grande, com muitos primos, primas, tios, tias e mais uns tantos agregados das mais variadas espécies. Tive uma infância plena e feliz e hoje, embora seguindo feliz, sofro muito de saudade. Registro aqui algumas impressões peculiares sobre a vida e seus desdobramentos, sobre o cotidiano e alguns tantos textos escritos para algumas pessoas em particular que exerceram e ainda exercem grande influência na minha vida, além de fazerem parte das minhas melhores lembranças, é claro! Não tenho grandes pretenções literárias, gramaticais nem sequer ortográficas, mas escrevo com muito amor, que é o que todo mundo precisa. Resumindo, mantenho o blog como meio de comunicação entre amigos e famíla distante e possíveis interessados. Entre e fique a vontade...

be my guest!

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Amizade sincera


pro meu Xuxu...
Não é que fôssemos amigos de longa data. Conhecemo-nos apenas na época da faculdade. Desde esse momento estávamos juntos a qualquer hora, mesmo que apenas em pensamento. Há tanto tempo precisávamos de um amigo que nada havia que não confiássemos um ao outro. Um amigo que não haveria de nos julgar e nem tão pouco seria complacente com nossas faltas de virtudes. Chegamos a um ponto de amizade que não podíamos mais guardar um pensamento: um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato. Depois da conversa, sentíamo-nos tão contentes como se nos tivéssemos presenteado a nós mesmos. Esse estado de comunicação contínua chegou a tal exaltação que, no dia em que nada tínhamos a nos confiar, procurávamos com alguma aflição um assunto. Só que o assunto havia de ser grave, pois em qualquer um não caberia a veemência de uma sinceridade pela primeira vez experimentada.

Já nesse tempo apareceram os primeiros sinais de perturbação entre nós. Às vezes um telefonava, encontrávamo-nos, e nada tínhamos a nos dizer. Podia ser um cinema, um almoço, uma corrida na beira-mar, tomar um suco ou uma água de côco, ou apenas passar horas a fio lendo vários livros numa livraria qualquer e nos encontrando em tantos personagens. Éramos muito jovens e não sabíamos ficar calados. De início, quando começou a faltar assunto, tentamos comentar as pessoas. Mas bem sabíamos que já estávamos adulterando o núcleo da amizade. Tentar falar sobre nossos mútuos romances também estava fora de cogitação, ninguém queria falar de seus amores e aventuras nesse núcleo, poderia soar ultrajante, tal era o nosso ciúme mútuo. Experimentávamos ficar calados — mas tornávamo-nos inquietos logo depois de nos separarmos.

Minha solidão, na volta de tais encontros, era grande e árida. Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Cheguei até a ler todos aqueles livros de auto-ajuda que me eram indicados por você, tão insuportáveis para a minha mente auto-suficiente quanto aquelas aulas de trigonometria. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo.

Foi quando, tendo sido transferida a trabalho vim morar em Santa Catarina, e eles seguiram morando em Fortaleza e sendo assim, passamos longos dias sem nos ver. Que rebuliço de alma. Radiante, pensava em como seria quando viessem me visitar e fazia planos e mais planos. Arrumava nossos livros e discos, preparava um ambiente perfeito para a amizade. Depois de tudo pronto — eis-me dentro de casa, de braços abanando, muda, cheia apenas de amizade.

Começamos nos ligando sempre, falavamos muito mas todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Com o tempo as chamadas diminuiram, mas em tempo algum deixei de senti-los presente. Como que por telepatia, meu telefone sempre tocou nos momentos em que mais precisava falar com alguém e sempre com aquela voz meiga e cheia de alegria e paz me dizendo: “Bom dia, Xuxu! Amooor... saudade de tu!” e por ai iamos horas a fio, sem perceber que o movimento da rua diminnuira ou que o sol se punha lentamente.
Mas como se nos revelava sintética a amizade. Como se quiséssemos espalhar em longo discurso um truísmo que uma palavra esgotaria. Nossa amizade era tão insolúvel como a soma de dois números: inútil querer desenvolver para mais de um momento a certeza de que dois e três são cinco.

Tentamos organizar algumas farra, mas não só a distância nos impediu como os raros momentos livres que tinha nas minhas idas e vindas a Fortaleza não eram suficientes o bastante e não adiantou.

Se ao menos pudéssemos prestar favores um ao outro. Mas nem havia oportunidade, nem acreditávamos em provas de uma amizade que delas não precisava. O mais que podíamos fazer era o que fazíamos: saber que éramos amigos. O que não bastava para encher os dias, sobretudo os longos meses de distância.

Data dessas viagens o começo da verdadeira aflição.

Desde um acidente de carro inesperado, a angústica de não ter alguém do lado pra conduzir-me a um hospital, a angústia ainda maoir de não poder e nem quer contar a ninguém para que não houvesse nenhum tipo de preocupação comigo. Afinal de contas eu escolhera a distância, a escolha do ostracismo fora totalmente minha e meu orgulho não me permitiria voltar atrás. Além disso, não seria justo clamar por ajuda sempre que houvesse um imprevisto. E foram dias assim, sem muito movimento para não terminar de quebrar as costelas, muita sonolência devido a remédios pra dor, casa acumulando sujeira e lágrimas de uma solidão profunda.

Mesmo assim, sem saber como e nem porque, meu celular tocou e ao fundo, aquela velha voz de sempre que tinha o dom de apaziguar todas as minhas inseguranças e angústias. Aquela e sempre aquela voz que me devolvia a paz, tamanho o otimismo cotidiano que mal nenhum deixava abater.

E foi assim por toda a minha recuperação. Foi apenas essa a voz que eu ouvi todos os dias, perguntando como eu estava, sondando e torcendo pela minha melhora, ligando na hora em que eu deveria tomar os remédios pra ter certeza de que eu não ia esquecer de fazê-lo. Me cobrando acompanhamento médico e se colocando a disposição para qualquer coisa. Embora não pudesse tê-lo ao meu lado, sua atenção me confortava. Esperei essa atenção de outras pessoas mais próximas que teoricamente deveriam estar ao meu lado. Devaneio! Amizades sinceras não vêm aos quilos.

É verdade que houve uma pausa no curso das coisas, uma trégua que nos deu mais esperanças do que em realidade caberia. Foi quando eu tive uma questão com a saúde do meu pai. Não é que fosse tão grave, mas nós a tornamos para melhor usá-la. Porque então já tínhamos caído na facilidade de prestar favores. Andou entusiasmado pelos consultórios médicos de conhecidos de família, arranjando consultas e exames para meu pai. E quando começou a fase de tentar adiantar as datas, correu por toda a cidade — posso dizer em consciência que não houve consulta que fosse marcada nem exame que fosse feito sem que fosse através de sua mão.

Nessa época falavamo-nos de noite, exaustos e animados: contávamos as façanhas do dia, planejávamos os ataques seguintes. Não aprofundávamos muito o que estava sucedendo, bastava que tudo isso tivesse o cunho da amizade. Pensei compreender por que os noivos se presenteiam, por que o marido faz questão de dar conforto à esposa, e esta prepara-lhe afanada o alimento, por que a mãe exagera nos cuidados ao filho.

Encerrada a questão com os médicos e clínicas — seja dito de passagem, com vitória nossa — continuamos um ao lado do outro, sem encontrar aquela palavra que cederia a alma. Cederia a alma? Mas afinal de contas quem queria ceder a alma? Ora essa.

Afinal o que queríamos? Nada. Estávamos fatigados, desiludidos.

Sabiamos que a vida seguiria seu curso e que mesmo assim, nos lembrariamos um do outro nos versos de Clarisse, nas poesias de Vinicius e nos mais estonteantes pôr-do-sol. Sabíamos que independente do quão distantes estivessemos, sempre teriamos um tempinho de sentar na areia, olhar pro mar e ouvir as ondas tendo a certeza de que nunca nos esqueceriamos.

A pretexto de viagens a trabalho, separamo-nos. Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus naquele domingo. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso e com pouca frequência. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros. E que seria pra sempre assim: sem cobranças nem medições, apenas amigos sinceros.